O acordo ortográfico, a diáspora e o diferente – ou, porque “saudade” não tem tradução

Saramago dizia sabiamente “minha língua é minha pátria”.

Em uma época em que mais uma vez se discutem as relações Portugal-Brasil (além dos demais países da comunidade que fala português) por causa do acordo ortográfico, podemos nos congratular com o seguinte fato: “saudade” não tem tradução e transcende as fronteiras da tecnicidade da escrita, da frieza das regras que muitas vezes comprimem (e oprimem) nossa expressão oral, pela redação.

Vejo isso através dos amigos brasileiros que fizeram de nosso Portugal sua casa, pelo menos por um tempo. E dos luso-descendentes, de raízes mais ou menos remotas.

Acredito ser esse um outro tema que merece um bom tempo de dedicação a ele: assim como não encontro um retrato fiel da diáspora portuguesa recente (há vagas impressões, boatos e suspeições, mas falta concretude… ou eu não estou sabendo pesquisar), quão bem conhecemos (integramos, respeitamos, entre outros) as comunidades estrangeiras que elegeram (ou de alguma forma, foram empurradas para) nosso país, por variados períodos de tempo? E quanto desse conhecimento faria de nós pessoas melhores e nosso país, maior? Cabe a reflexão.

A esse propósito, lembrei-me de bater um papo com um amigo querido que conheci na Universidade de São Paulo, no campus de Piracicaba. Ele pertence aquele grupo que, como eu, em Portugal é brasileiro, e no Brasil, é português. Sendo que ele não é português – mas luso-descendente. Por eu considerar que ele representa uma geração de pessoas que sabe aproveitar o melhor dos dois mundos, e crescer com isso, e ainda tentar deixar um legado do bem por onde passa, tomei a liberdade de entrevistá-lo. Aqui ficam algumas linhas, quem sabe para despertar nossa curiosidade quanto ao outro diferente de nós – e aos benefícios de nossa convivência com o diferente[1].

Cláudia – Quem és? De onde em Portugal vieste? Quando chegaste ao Brasil? O que te trouxe até aqui? O que te atrai no Brasil? 

Marcos – Sou Marcos, nasci no Rio de Janeiro e pertenço a uma família de classe média que emigrou para Portugal em 1988, após a grave crise econômica que se instalou no Brasil e culminou com a saída do Presidente brasileiro em 1992. Lembro-me como se fosse hoje, apesar de já terem passado muitos anos. Tinha uns oito anos e foi uma mudança drástica, do subúrbio do Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa, para a pequena Mangualde, no distrito de Viseu. Após toda a fase escolar e universitária (incluindo Viseu, Santo Tirso, Porto e Bragança), recebi um convite em 2004 para fazer o mestrado na Universidade de São Paulo, a se iniciar em 2005. Aceitei e fiquei, até hoje.

C – Que desafios tens enfrentado, em termos pessoais e profissionais do lado de cá do Atlântico? E o que nunca deixou de te encantar em Portugal?

M – Que pergunta complexa! (Risos). Costumo dizer que são países muito diferentes, porém, com muitas coisas em comum. O convite que referi foi tentador porque percebi que iniciar uma carreira na pós-graduação em um dos departamentos mais importantes da USP, o Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz[2], era algo que não poderia recusar. Na ESALQ fiquei por 10 anos até ao fim do pós-doutorado. Muitos me perguntam: e quando voltas a Portugal? Nesses meus dez anos de Brasil, Portugal entrou em uma crise imensa, que começou mais ou menos em 2006, e percebi que meu perfil profissional aqui no Brasil estava crescendo, então, porque retornar a Portugal? Claro que a saudade é diária e tem coisas que não aceito no Brasil, mas minha terra natal acabou me aceitando bem. Acho que o maior desafio profissional e pessoal é viver em um país com muita corrupção e criminalidade (o que nos entristece e envergonha), mas as oportunidades ainda são muitas. Sinto estar crescendo diariamente, e como em “equipe que ganha não se mexe”, porque mudar?

C – Qual é a tua relação com o Brasil?

M – O Brasil é minha terra natal, é parte da minha cultura, é onde vivo hoje. Mas daí vem os 20 anos de Portugal, aquela significativa e intensa personalidade portuguesa, e hábitos que não mudo nem faço intenções de mudar. Há situações que vivo no dia a dia, que, por segundos, acredito que estou em Portugal. É algo difícil de explicar, só quem tem a experiência na mesma dimensão pode entender.

C – Onde vives no Brasil? O que fazes e como és conhecido na região e no teu trabalho?

M – Vivo no interior de São Paulo, em uma cidade chamada Bauru. Vim para aqui porque recebi um convite para criar um programa de mestrado na minha área de pesquisa, em uma universidade tradicional na cidade, a Universidade do Sagrado Coração. Já se passaram dois anos e a produção e conhecimentos têm sido intensos. Aprendi a ser um professor, pesquisador e extensionista. Na verdade, estou aprendendo, porque sou muito exigente comigo mesmo e quero melhorar todos os dias.

C – Quanto da ciência (de tua área) de Portugal o Brasil conhece? E o inverso? Quais causas apontarias para esse panorama?

M – Olha, é uma excelente pergunta. Infelizmente pelo que ouço, a ciência está muito lenta em Portugal, sobretudo pela carência de apoios financeiros, e naturalmente, pela dimensão do País, não existe uma produção científica que faça o país se destacar no panorama mundial. No entanto, conheço pesquisadores, e grupos de pesquisa portugueses, que são respeitados e são referências em muitas áreas. Da minha área desconheço, confesso. Preciso fazer um exercício nesse sentido, mas até ao momento não li nada sobre estudos de diversidade de recursos genéticos vegetais com marcadores moleculares publicado em Portugal.

C – Como é ser um português-luso-descendente no Brasil, segundo tua leitura?

M – Um pau de dois bicos (risos). Um sofrimento constante e uma alegria impossível de descrever. Um sofrimento, porque vivemos nessa saudade diária e na vontade de juntar o que é bom de ambos os países. A alegria, porque me permite viver e usufruir do bom que os dois países me deram e continuam me oferecendo. Ter essa leitura do Brasil e de Portugal, e de seus universos culturais, se colocar em uma posição neutra, e a partir disso poder escolher como se usufruir disso, é uma característica minha, seja como um português-luso-descendente no Brasil, ou qualquer rótulo que você queira me atribuir.

C – Em algum momento pensas “regressar às origens”?

M – Qual seria essa origem? Minha mãe é de famílias espanholas e alemãs, meu pai, sim, de origem portuguesa, mas sem conhecimento de que lugar exato de Portugal. É uma pergunta que muitos me fazem, talvez não tanto como há alguns anos atrás. Gostaria, sim, de voltar a Portugal por um período maior, talvez como investigador convidado, mas só o futuro pode dizê-lo. Viver definitivamente, não sei… no momento, não.

C – O que achas da frase de Manoel Bandeira “um brasileiro é um português à solta”?

M – Ah, esse Manoel Bandeira (risos)… Acho que um brasileiro é parte da produção de um português, e isso me orgulha muito. Mas sabemos que o brasileiro é produto de várias nacionalidades. O brasileiro herdou muitas coisas dos portugueses, e uma destas características é a sede de descobrir, de sair e conquistar. Naturalmente me revejo muito nisso. Pode ser que sejamos uma espécie de portugueses à solta, mas como Eça Queiróz também dizia “o brasileiro é simplesmente a expansão do português”.[3]

 

[1] Recomendo a leitura do livro “Patrimônio genético português – a história humana preservada nos genes”, de Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro (2009), Editora Gradiva. Apenas a título de auxílio à nossa memória histórica, de quão diversas, e não raro conflituosas, são nossas origens.

[2] www.esalq.usp.br

[3] Quem tiver curiosidade e desejar saber mais sobre Marcos Siqueira (Dr.) e o seu trabalho, recomendo o website do seu grupo de pesquisa: http://www.usc.edu.br/geva/