Partir de Portugal. Chegar ao Kosovo.

No início deste mês fez quatro anos que cheguei a terras do Kosovo. Dizer que o tempo escorreu sem piedade, é lugar comum. Não sei para onde foi, sei que foi vivido e talvez por isso esta dolorosa sensação de ter passado rápido demais.

Venho de uma família que tem muitos dos seus entes emigrados em terras do Canadá e dos Estados Unidos. Deste cedo me habituei a ter tias/os, primas/os a viver lá longe, onde o olhar não chega, o horizonte foge e o quadro Os Emigrantes do pintor Domingos Rebelo toca e faz chorar. Os meus familiares foram, assim como quase todos os portugueses espalhados por esse mundo, à procura de melhores condições de vida. Não tinham elevadas habilitações académicas e necessitavam escapar à crise. Muitos anos mais tarde, já crescida e em pleno século XXI, nunca pensei assistir incrédula à saída de tantos portugueses para outros países, na mesma à procura de soluções para a crise e na ânsia de melhorar as condições de vida. Agora, para o melhor e para o pior, grande parte dos que partiam levavam no bolso habilitações académicas de nível superior e até Curriculum Vitae digno de atenção. Triste realidade esta, a que obriga os filhos de uma nação a partir porque a promessa de uma vida com qualidade mínima não se cumpre. Lamentável, este fado.

É mais ou menos neste contexto que a minha história pessoal se insere, embora com claras divergências de amplitude. Recordo com comoção os dias entre a decisão e a efetiva partida dos Açores, da ilha  no meio do mar plantada.  Partir é sempre uma decisão que custa porque se deixa o nosso cantinho, a nossa zona de conforto, o terreno que dominamos e onde somos donos e senhores.  Não evitamos a ansiedade, o medo do desconhecido, as dúvidas e as enumeras questões sobre tudo. Sentimo-nos num limbo, entre a luz e a escuridão. Partir, nunca é fácil, mas partir em particular para um lugar como o Kosovo, da qual a maioria das pessoas só tem conhecimento através do filtro dos Media não é decisão que se tome de ânimo leve, sobretudo porque a ideia generalizada apenas reconhece o lugar no cenário pós-guerra. Não saí do país por especial necessidade de melhorar a minha qualidade de vida. Tinha 36 anos e estava no auge da minha carreira profissional, num centro de um desafio fantástico a este nível. Os meus filhos tinham 5 e 3 anos. Eram crianças. Tão somente. Felizes, especialmente.  Mas, em mim, o espírito aventureiro e a vontade de rasgar sempre foram uma força maior. Um chamamento. Foi assim que, com certa angústia mas muita determinação e garra decidi acompanhar o meu marido na decisão de partir para que ele pudesse participar numa missão de justiça europeia no Kosovo. Um grande desafio profissional para ele. O abandono do meu desafio profissional. A minha entrega à família.  O começar de novo, noutro lugar, sem saber bem se, no caso do Kosovo, era outro ‘país’ ou não (pela situação política), sem saber bem que cidade e pessoas ia encontrar, que histórias de dor e sofrimento teria de aguentar, que infraestruturas teria à disposição. Tínhamos um casal muito amigo a viver em Prishtina há alguns anos. Foram eles o nosso abrigo, a nossa bússola. Saber sobre a segurança foi a primeira grande preocupação. Ultrapassada esta, concentramo-nos nas necessidades mais importantes como acesso a médicos, hospitais, farmácias, escolas internacionais e afins.

Se foi fácil decidir pelo sim? Não! Definitivamente. Muito ficava para trás, sobretudo, para mim, anos e anos de relação com alunos e inteira dedicação a uma escola que era a minha casa. Lembro da expressão de surpresa e apreensão no rosto das pessoas quando lhes dizia que ia partir para o Kosovo. Infalivelmente seguia-se a pergunta: “ – Tens a certeza?” Tinha. Dentro de mim algo me dizia que sim, embora também sentisse medo. Era tempo de me desafiar, rasgar, ver se conseguia viver num lugar em crise maior que o nosso país, com poucos recursos e sem ostentação. Queria partir em direcção ao desprendimento.

Vem-me à memória a luz difusa que banhava o aeroporto Sá Carneiro naquela manhã de Março, o facto de olhar para todo o lado como que a respirar o ar português uma última vez, a correria para chegar a horas ao check-in e a simpática funcionária da TAP que, vendo o destino final do bilhete, deixou escapar num espanto: “- A senhora vai para os lados da Sibéria?” Ri-me. Na mente, as leituras de Dostoiévski. Desculpei-a com o sinal afirmativo de que ia para um lugar frio. Foi assim que saí de Portugal. A certeza do frio e uma mala. Uma vida e cada um de nós apenas trouxe uma mala. Os meninos tiveram direito à escolha de um único brinquedo. Um. Não tínhamos espaço e eles precisavam escolher. Jamais esquecerei a lição do meu filho mais velho. Decidiu-se pelo livro de orações para crianças que o melhor amigo lhe oferecera na despedida. Desde o minuto que saiu da ilha Terceira, enquanto esteve no Continente à espera do dia da derradeira partida para o Kosovo, dormiu sempre acompanhado deste livro. Com mil cuidados colocava-o debaixo da sua almofada.

Deixa-se alma quando se parte. Abraça-se saudade de quem e do que ficou.

Chegar é desassossego! Chegar é inquietude!

Chega-se num estado entre o sangrar e o ansiar. Uma agonia triste. Um suspiro alegre para ver, cheirar, tocar, sentir. Chega-se sôfrego pelo novo, pelo diferente. Com desejo perdido entre o captar e dar, receber e oferecer, deslumbrado num movimento recolhido e  exposto. Chega-se esvaído, o estômago num aperto. Ávido, os olhos em abertura.

Chegar, entre o alvoroço e o apaziguar, de mansinho faz renascer mas nunca esquecer o que ficou. A mala, quase vazia, lenta e paulatinamente se vai enchendo de novas pessoas, experiências, culturas, sentires e sabores que salvam e resgatam toda e qualquer decisão e a transformam em alma. Curioso como ambas as palavras têm precisamente as mesmas letras: MALA. ALMA.

Hoje, felizmente posso afirmar, a alma está cheia, com todos os avessos e todos os ‘direitos’ da vida no Kosovo.

Prishtina, 22 de Março de 2016

Ana Cristina Oliveira Medeiros de Madureira