Páscoa 2016 em Prishtina, Kosovo

 As épocas festivas são momentos particularmente difíceis de suportar para quem vive longe dos seus, da pátria e das respectivas tradições. A sensação de que falta ‘qualquer coisa’ que não é coisa alguma mas talvez uma presença, um abraço, um gesto, um cheiro, um sabor, nos remete para as nossas raízes, é esmagadora e transporta a memória para tempos idos de muitas histórias por contar. Não raras vezes ocorre que no passado essas histórias não tivessem tanto significado ou mesmo importância. Talvez naquele tempo fosse o sentir da tenra idade que as tornavam banais, ou talvez seja, hoje, a sabedoria da idade, a distância em muitos quilómetros e a divergência das tradições que as tornam relevantes e queridas. Há sempre uma parte de nós que fica quando se vive longe e que teima em chamar, sobretudo nos dias de especial celebração.

Prishtina é uma cidade quase alheia às celebrações da Páscoa. Capital do Kosovo, com uma estimativa que ronda os 198 000 habitantes, a sua população é, por larga maioria, muçulmana (mais de 95%), herança que preserva da antiga conquista otomana na região. Pertencendo os poucos restantes à Igreja Católica Romana (2000) e à Igreja Ortodoxa (Sérvia ou Bizantina), facilmente se depreende porque não se sente no ar as preparações para esta festividade. Acresce salientar que os supermercados locais não evidenciam sinais de conhecerem as tradições pagãs associadas à celebração em causa. Não há ovos de chocolate, amêndoas, coelhinhos e afins, à venda.  Nós, portugueses cá residentes, com certeza acrescentaríamos, muito menos há padarias com folares!

Assim, numa realidade despida de qualquer alarido à volta da Páscoa, toda a acção que aproxime do significado da época, da esperança na luz da salvação em Cristo e preencha o vazio da longura da pátria e da família, ganha contornos da ordem do extraordinário. É neste contexto que destaco algumas acções patenteadas pela força multinacional constituída por 324 militares, 190 portugueses e 134 húngaros, nomeadamente a participação no sábado, 26 de Março, pelas 21.00h, na Vigília Pascal na Igreja Madre Teresa; nesta eucaristia, presidida pelo bispo local, Dom Dodë Gjergi, estiveram cerca de 50 militares, tendo celebrado o Sacramento do Crisma 9 dos portugueses. Assistiu-se a um momento alto, contagiante e emocionante de fé, testemunhado pela comunidade católica local. Foi uma missa de Páscoa que conquistou todos os envolvidos, pela simplicidade, pelo acolhimento, pela convivência intercultural, até mesmo pela necessidade do recurso a diferentes línguas já que foi celebrada em albanês, o evangelho foi lido também em inglês e os portugueses tinham o texto de toda a celebração na nossa língua. Nas palavras do padre Luís Morouço, capelão do 2º Batalhão de Infantaria Mecanizado da Brigada Mecanizada, foi uma eucaristia intensa, participada e longa, mas sem que nos déssemos conta da passagem do tempo. A própria circunstância das obras que ainda decorrem no interior da igreja, o facto de ser noite, acentuaram o misticismo do momento. “Sentimo-nos todos envolvidos pelo Mistério do Amor de Deus e ficámos com vontade de acampar naquela Igreja. Apeteceu ficar”, disse, invocando o evangelho da Transfiguração. Tornou claro que houve generalizada vontade de cristalizar aquele momento tocado pelo eterno, pelo infinito, pela esperança da ressurreição. Quando interrogado sobre as razões que levam um militar português a querer fazer o Sacramento do Crisma no Kosovo, referiu a prática da tradição cristã que traça um caminho de fé a percorrer e a maior facilidade de horários e disponibilidade do que a do ambiente paroquial para os encontros necessários ao processo de preparação dos adultos.

A conversa com este capelão permitiu ainda perceber que desde a chegada ao Kosovo, em Outubro de 2015, se intuiu que o Natal e a Páscoa seriam dois acontecimentos congregadores de sinergias comuns. Urgia torná-los especiais, contornando assim a saudade que a distância sempre provoca. No estrangeiro, fintar a saudade é instinto de sobrevivência. Alimentar a alma é prioridade. Foi, portanto, com grande sorriso e enorme entusiasmo que o Major Luís Morouço falou das várias diligências caritativas feitas pelo nosso Batalhão. O espírito de partilha e ajuda que acompanhou esta missão também se materializou no destino dado ao peditório das missas semanais: distribuição pela Igreja do Kosovo. Identificados os destinatários, as ofertas das missas foram transformadas em bens alimentares para crianças, azeite e óleo, fraldas para adultos carenciados, produtos de higiene pessoal e artigos de desinfecção. Foram ainda distribuídos alimentos da reserva estratégica que o Batalhão dispõe e precisou actualizar. A envolvência foi de tal ordem que abrangeu a própria empresa de serviços ao Batalhão. No cabaz de donativos coube ainda o gesto de um militar português que discretamente ofereceu uma cadeira de rodas a uma instituição, hipotecando generosamente a quase totalidade da sua mesada. Expressões profundas da dimensão evangélica de generosidade e solidariedade promovidas pelos nossos militares e que, em Prishtina como em qualquer outro lugar, marcam diferença.

Já no dia de Páscoa, os poucos portugueses residentes no Kosovo tiveram a honra de ser convidados pelo Comandante do Batalhão português, o Tenente-Coronel de Infantaria Carlos Macieira, para o almoço. A concentração dos convidados deu-se na Casa de Portugal, Campo Slim Lines, em Prishtina, tornando possível um muito agradável convívio e conhecimento entre civis e militares. O almoço permitiu que Portugal estivesse consideravelmente ‘mais perto’ e as saudades fossem atenuadas. Ouvir falar ao redor na nossa língua e ver nas mesas alguns dos nossos pratos típicos e doces de Páscoa foi um autêntico regalo. Os tradicionais folares, os tais que me habituei a não ver por cá, não faltaram à chamada e deliciaram a memória gustativa. Um galhardete, pequena lembrança distribuída pelo senhor Comandante aos convidados assinalou, ainda mais, o especial momento. De portugueses, para portugueses e entre portugueses foi assim sentida e vivida a Páscoa por terras kosovares.

Obrigada aos que a proporcionaram.

Prishtina, 29 de Março de 2016

Cristina Madureira

As fotos que passamos a divulgar foram gentilmente cedidas pelo capelão do 2º Batalhão de Infantaria Mecanizado da Brigada Mecanizada presente em Prishtina e expressam algumas das acções referidas no texto.

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