Artigo de Sónia Franco, a Correspondente Diáspora Lusa na Madeira que retrata uma história mirabolante de um emigrante madeirense.
O rapaz dos olhos azuis
“Com esta fé seremos capazes de retirar da montanha do desespero uma pedra de esperança”, disse-o Martin Luther King Jr. em Washington, a 28 de Agosto de 1963.
No mesmo ano, um jovem de olhos azuis, oriundo de uma família numerosa pobre, agarrava-se à sua fé e partia em busca de um sonho. Fugiu da fome, da miséria, do trabalho árduo do campo. Para trás, ficaram os irmãos, os pais e uma vida que adivinhava ser repleta de sérias dificuldades, numa terra demasiado pequena e pobre para a sua ambição. Com poucos pertences, escondeu-se num navio de carga.
Chegou a Lourenço Marques com a bagagem cheia de vontade de vencer na vida. Procurou o homem que todos falavam. Era ele quem ajudava os conterrâneos que fugiam à procura de algo melhor. O encontro não demorou muito e aos 16 anos, o jovem fugitivo de olhos azuis já tinha tecto, pão, roupa e trabalho. Foi acolhido por alguém que ainda hoje merece o seu maior respeito e admiração.
Durante meses esforçou-se na lavoura, mas sempre com a ideia fixa de que não poderia ficar por ali. Não chegou a ouvir um dos discursos mais famosos da História, mas as pedras da esperança foram rolando pela encosta da montanha do desespero e o jovem de olhos azuis não tardou em tomar uma decisão: partir em busca do desconhecido e fazer fortuna em terras diferentes.
A derradeira decisão chegou num dia igual a outro qualquer. O dinheiro amealhado ao longo dos meses na lavoura serviu para pagar o transporte ilegal para outro país. A solução encontrada para passar a fronteira foi escabrosa na altura e ainda hoje o é. Escondeu-se numa carcaça de vaca. O camião transportava carne para a África do Sul e o jovem não hesitou nesta fuga no mínimo criativa. Foram horas de agonia e mal-estar, mas a determinação e a fé num futuro melhor ajudaram-no a suportar os sacrifícios.
Mandela escreveu um dia que “a esperança é uma arma poderosa e nenhum poder no mundo pode privar-te dela” e foi justamente com a esperança que o fugitivo chegou ao seu destino. Esforçado e trabalhador fez fortuna num ápice. Constituiu família, criou um império e fez amizades sólidas com pessoas de raças diferentes da sua. Conhecedor do sofrimento, da vontade de querer mais e melhor e principalmente do que isso lhe havia custado, o jovem de olhos azuis fez questão de respeitar o próximo num país onde prevalecia o apartheid. Não precisou de explorar, maltratar, escravizar. Bastou-lhe ser… humano.
Meio século depois desta aventura, conheci o protagonista desta história. Numa manhã cinzenta, bateu-me à porta e deixei entrar esta incrível história de vida. Com uma vivacidade contagiante, falamos de tudo um pouco. Da terra natal que se desenvolveu de forma impressionante, da família que é preciso ajudar, das viagens que marcaram uma vida, do carro novo, dos negócios que precisa de investir. Da condição humana que tem de ser preservada acima de todas as coisas. Da importância de ajudar o próximo sem olhar a raças ou credos.
À minha frente, estava o jovem de olhos azuis, com o rosto marcado pelos anos. Não se chama Muhammad, nem Abdullah. Não é sírio, nem afegão, nem vai ao almoço de boas vindas em São Vicente. Chama-se Eduardo e é natural do Curral das Freiras.
Diáspora Lusa-Laços Com Valor
Contacte-nos